Aquelas palavras
 



Contos

Aquelas palavras

Nunes de Oliveira


Sandoval pegou a maleta sobre o banco do passageiro. Fechou a porta. O alarme de travamento soou enquanto ele caminhava para o portão. Era terça e já se sentia cansado, mesmo com a janela do dia anterior, que estendia a folga. A maleta parecia um pouco mais pesada com as provas e trabalhos escolares que devolveria dali a alguns minutos.

Antes de alcançar a fronteira que separa o mundo do universo escolar, ouviu gritos, falas alteradas, sons de correria. Sentiu uma vontade irresistível de voltar para o carro, esquecer tudo por um tempo. Suas responsabilidades foram o anjinho sussurrando em seus ouvidos. Entre os gritos, parecia reconhecer aqueles que o assombravam todas as semanas. Identificava cada timbre como se fosse um disco arranhado pesando em seus ouvidos.

Entrou. Rostos alegres e zombeteiros viraram-se para ele, que se manteve indiferente. Era assim todos os dias, durante vinte e dois longos anos. Sandoval sentia-se um Sísifo rolando sua pedra montanha acima. Quando ela despencava, ele corria tentando não ser esmagado.

A reivindicação da classe, duas semanas antes, não teve o resultado esperado. O aumento era como uma pequena gota no oceano. E ainda tinham os atrasos, um açoite mais forte. Perguntava-se - e já há muito tempo - se algo valia à pena.

No caminho à sala dos professores, dois alunos passaram por ele. Um deu um tapinha em seu ombro.

- Fala, profê. Trouxe as notas?

- Trouxe. - Foi tudo o que disse, indiferente.

Ali adiante viu Gerson e Lucas, que ele jurava ser a "coisa" que possuíra a menina no filme O Exorcista. Respirou fundo e continuou. A sala estava próxima agora. Lá dentro cumprimentou colegas, alguns tão indiferentes quanto ele; outros, um pouco mais animados. Cadernetas sobre a grande mesa iam sendo recolhidas e todos seguiam para suas salas depois que a campainha soou.

Na sala, a mesma cena após a entrega das provas: gritos de alegria, queixas, revoltas, súplicas por pontos. E a raiva pelo professor. Os mais revoltados impediam que a aula prosseguisse; repreensões em nada funcionavam. O inferno ia esquentando aos poucos. Ao final, ele terminava com seu discurso, sútil, mas cortante. O valor conquistado de cada um, não como alunos apenas, mas como pessoas; o respeito, só alcançado quando oferecido. Palavras que faziam rir, mas que pareciam deixar marcas em alguns rostos.

Saiu da sala desanimado, perguntando se aquilo adiantava. A garganta ardia.

A sexta-feira se aproximava e ele sentiu um alívio antecipado. Entrava até um pouco mais alegre nas salas. A balbúrdia que se seguia logo o fazia querer riscar a quinta do calendário. Não conseguiu concluir o conteúdo, sentiu-se pequeno, escoado pela indisciplina. Novo discurso. Deixou a sala ainda mais desanimado, já convicto de que nada adiantava.

Um dia estava caminhando pelo corredor depois da aula. Essa, um pouco melhor. Entrava o intervalo. Olhou o celular, havia mensagens a serem respondidas. Sentou-se no batente da pequena mureta, próximo a uma sala, quando Gerson saiu. O menino sentou-se a seu lado, parecia sem graça. Cumprimentou-o, olhando ao redor, e logo iniciou uma conversa. Sandoval não acreditou. Um dos alunos mais bagunceiros da escola estava ali, diante dele. Desabafava, lamentando-se sobre si, a falta de inteligência, como ele mesmo expressava.

O professor sentiu-se tocado com a sinceridade do menino. E tudo depois "daquelas palavras", como dissera o aluno, que o fizeram pensar. Conversaram. Sandoval decidiu ajudá-lo começando pela autoestima. Descobriu do que o garoto mais gostava: quadrinhos. Passou a emprestar livros que contavam a história dessas produções. O aluno mergulhava nos conteúdos. Logo, uma leitura puxava outra, e mais outra. Os conteúdos iam variando de acordo com a curiosidade de Gerson.

Sandoval assistiu ao progresso do aluno, que passara no vestibular alguns anos depois, para Educação Artística. E imaginou quantos "Gersons" mais haveria em cada sala.

Era sexta-feira quando ele deixou a escola moído e quase afônico ao final do dia. Enquanto caminhava para seu carro, pensava na folga, mas sua mente repetia: que venha a terça. Depois de vinte e oito anos, ele se redescobrira como educador, um espírito que faz o mundo girar.


Nunes de Oliveira é natural de Teresina - PI. Em 2001, escreveu seus primeiros poemas, alguns deles autopublicados na coletânea "Toda Versidade". A produção de contos veio em 2011. Desde então, ele vem se dedicando a esse gênero. Em 2022, teve o conto "Eterno retorno" publicado pela editora Metamorfose na coletânea "Contos Reunidos". Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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